terça-feira, 26 de março de 2024

A todas as "Auroras"...

"Prometo que foi a última vez, desculpa eu vou mesmo mudar" foi o que ela ouviu quando ainda estava caída no chão da sala, a tentar limpar o sangue que lhe escorria do nariz, com a ponta da manga do seu hoodie.

Já tinha perdido a conta das vezes que ouvira aquela frase, uma frase mais antiga que ela própria e que tantas outras também ouviram antes dela. 

Na sua cabeça, tentava lembrar-se de como é que tudo aquilo tinha começado, em que ponto da sua vida tinha havido tamanha falta de coragem que a tivesse impedido de se defender e impor da primeira vez que ele lhe levantou a mão, já nada lhe fazia sentido, tinha a cabeça a andar a roda e tudo o que se passou de seguida parecia uma cena de um filme em câmara lenta quando na realidade não passou de uma fração de segundos... 

Uma súbita força vinda dos confins da sua alma oprimida fizeram na levantar, e é aqui que começa o problema, pois o problema de todos os agressores é nunca contarem que vai haver um dia que a sua vítima vai reagir tal e qual como um animal selvagem ferido, e na vida selvagem vale tudo para sobreviver. 

Nem pensou, num impulso primitivo e selvagem limitou-se a sobreviver, pegou no cinzeiro de pedra, que se encontrava em cima da mesa de centro à frente do sofá, e deu com ele na nuca do seu companheiro. 

Caiu no chão inconsciente. Que frágil lhe parecera agora o seu habitual agressor, que fácil seria agora infligir toda a dor que ele lhe causou ao longo dos anos, que simples seria agora que ele se encontra nesta posição tão impotente e incapaz de se defender pegar a beata de um cigarro e apagá-la no seu tronco nu ou talvez no pescoço assim sempre ficavam com uma cicatriz a condizer, ou melhor aproveitar se do seu estado de inconsciência e abusar dele assim como assim nem se vai lembrar porque estava inconsciente, que mal teria? Podia continuar a bater-lhe, fazer-lhe as mesmas marcas que ele lhe foi fazendo nos últimos anos, podia, queria tanto, mas tanto, que lhe doesse tanto quanto a dor que ela sentia.

Podia ter feito tanta coisa...mas a porta, alguém tinha que bater à porta, naquele preciso momento em que na sua cabeça só lhe ocorriam variadíssimas maneiras de se vingar de toda a dor e violência, alguém lhe batia à porta, provavelmente o casal do 3º andar, devem ter ouvido o estrondo do corpo do seu marido a cair no chão,  abriu a porta e eles não perguntaram nada, mais uma vez só disseram "ouvimos te gritar" e foi nesse momento que a adrenalina que percorria o seu corpo desapareceu, as lágrimas começaram rolar pela sua face inchada e dorida assim como o sangue que lhe escorria do nariz novamente, começou a sentir tudo de uma só vez, as dores do corpo e as da alma, a mágoa, o arrependimento, a angústia e o medo. 

Aquele medo congelante que sempre a impediu de tomar uma atitude, medo que ele acordasse ainda mais furioso que antes, ou pior...medo que ele não acordasse de todo.

- "Tirem-me daqui, por favor!" Suplicou Aurora.

- "Acabou...já acabou, agora vais ficar bem" disse-lhe Marta, a vizinha, enquanto a abraçava.

- "Acabei de falar com eles, vão mandar o carro de patrulha e uma ambulância, e nós somos tuas testemunhas... foi em legítima defesa" Diogo fez questão de frisar bem a sua última frase, de forma a tentar transmitir alguma confiança a Aurora, que chorava compulsivamente.

- "Eu não queria....eu juro, mas ele...eu não queria...desculpem" soluçava sem conseguir articular uma frase seguida.

- "Desculpa de quê Aurora? A culpa nunca foi tua, agora tens de cuidar de ti, nós vamos te ajudar e tu vais ficar bem, ainda há esperança para ti e agora podes ser feliz"


E assim foi, ficou tudo bem, perante a justiça ficou provado ter sido em legítima defesa e com o passar do tempo as feridas do corpo foram desaparecendo, as da alma...essas demoram mais a sarar, mas eventualmente também irão passar.

Para Aurora houve o que se pode chamar de final feliz, ela conseguiu escapar das mãos do marido e das estatísticas...

E tu?

Vais fazer parte dos números anuais de vítimas mortais de violência doméstica?

E tu, que ouves os gritos ao longe desde o conforto do teu lar, vais ser uma Marta ou um Diogo? Ou vais continuar impávido e sereno a aumentar o som da TV  para fingir que não ouves os gritos?

E tu? Tu que devias ter vergonha nessa tua cara e não tens... Tu que juras mudar, que juras nunca mais lhe tocar, que acordaste tão diferente mas se logo a noite o jogo de futebol correr mal é a ela que vais espancar, porque no fundo quem mais jura mais mente.

Até quando? Até quando vamos ter de assistir a essas histórias reais?

Quantas mais vão ter de tombar e entrar para as estatísticas nacionais para que realmente se comece a fazer algo?

O caminho ainda é longo, muito se fez até aqui, mas ainda não chega, ainda temos muita luta pela frente.

Que nunca se calem as vozes que defendem os oprimidos e os que sofrem.

Que haja sempre uma Marta ou um Diogo por perto.

E a todas as Auroras desta vida, que nunca lhes falte a coragem.


Sombra