quinta-feira, 25 de abril de 2024

Memórias daquela madrugada

Era noite cerrada e no horizonte só se via o nevoeiro, a chuva miudinha batia contra a janela da sala, era meia noite, três horas tinham passado e ele ainda não tinha voltado, disse que não demorava que era só um convívio de amigos lá da tropa, mas cá dentro eu sabia que algo mais se passava, pois um medo sombrio assolava a minha alma. Perguntei-lhe onde era o encontro mas fugia de me dar uma resposta como o Diabo foge da cruz, apenas me disse "Logo saberás...", deu-me um beijo e saiu.
Já se sentiam os ventos da mudança há algum tempo, apesar de desejar tanto quanto ele que as coisas ganhassem um novo rumo no fundo tinha receio, medo que ele se metesse de novo em sarilhos com a polícia política, já tinha sido um bico de obra, meses antes trazê-lo de volta lá da sede deles no Chiado. Passavam cerca de 20 minutos depois da meia noite quando me bateram à porta, era a dona Elvira do 1º andar estranhamente animada e ansiosa "liga a telefonia filha!" dizia, "mete na Renascença...está na hora minha filha!" meio confusa, atendi ao seu pedido, não estava a compreender nada do que estava a acontecer naquele momento, não me agradava muito a ideia de ligar o rádio, na realidade até disso tinha medo (afinal ainda na semana passada a PIDE tinha passado a nossa porta todas as noites, deviam de andar a ver se estávamos a ouvir a Rádio Moscovo provavelmente), a única coisa que sabia é que tinha a ver como meu Manuel e isso não me deixava o coração sossegado.
Apesar de inquieta e extremamente confusa lá liguei o rádio e foi então que percebi a alegria desmedida que se refletia na cara da dona Elvira, pela voz de Zeca Afonso soava bem alto na Rádio Renascença "Grândola, Vila Morena", e ali eu soube que os rumores eram verdade, os dados já tinham sido lançados e o plano já estava em andamento, o nevoeiro não anunciava a chegada de D. Sebastião mas trazia a primeira brisa de liberdade.
 
Nunca tinha conhecido outro modo de vida sem ser aquele, beijar o meu namorado só às escondidas pois corria o risco de levar uma coima e ficar com a cabeça rapada, não podíamos pensar e muito menos falar, não podia ler os livros que queria nem mesmo ouvir a música que me apetecia, na rádio, na TV e nos jornais só passavam programas e só era escrito o que fosse aprovado pelos agentes de censura e pelo seu “lápis azul”, ter opiniões diferentes era um risco e mais ainda se fossem contrárias ao regime, as pessoas nem se podiam juntar em grupos para falar ou trocar opiniões sem correrem o risco de ser presas.

Nós mulheres, estávamos ainda mais limitadas! As mulheres casadas só podiam viajar para fora com autorização do marido e até a correspondência delas eles podiam abrir e pior se quisessem, os maridos podiam ir pedir aos patrões das esposas para que estas fossem despedidas e divórcio nem sequer era a opção nem mesmo se fossem vítimas de violência doméstica, eu e o Manel nem pudemos casar porque eu era enfermeira e na época esse direito estava vedado a todas as mulheres que fossem não só enfermeiras mas também as telefonistas e as hospedeiras e as professoras tinham de ter uma autorização do Governo para o poder fazer, a carreira não passava na zona onde vivia e eu tinha de ir a pé para o trabalho porque até para andar de bicicleta era preciso licença e eu não tinha, o direito ao voto só se tivéssemos o ensino secundário mas também não valia de muito votar pois as eleições não eram livres nem democráticas, enquanto andei na escola as raparigas e os rapazes não tinham aulas juntos nem podiam confraternizar e todos os dias à entrada da escola mediam a minha saia porque não podíamos ter os joelhos à mostra e nas aulas nem podíamos ter os braços descobertos, para podermos tomar banhos na praia tínhamos de estar quase tão vestidas como para andar na rua, ai da mulher que se atrevesse a usar bikini em vez de um fato de banho… Ser mulher era ser penas e só, submissa a tudo e todos e uma “máquina” de fazer e parir bebés, “Deus, Pátria e Família” diziam eles, e era só isso que importava e nada mais. 

No meio de tudo isto, posso dizer que até tive sorte pois tive um bom homem a meu lado que já na época pensava fora caixa e sempre me tratou como igual e não como inferior como a maioria de nós mulheres eram tratadas, mas ainda assim o medo era constante, medo de pensar, falar e às vezes até mesmo medo de simplesmente existir. 
As injustiças quanto ao simples facto de ser mulher eram mais que muitas e uma realidade bastante vincada, a vida era assim e eu não conhecia outro tipo de realidade até aquela madrugada chegar.
Até à chegada daquela madrugada eu só sobrevivi.

Enquanto tentávamos ouvir mais alguma informação nas outras estações de rádio ao sintonizar na Rádio Clube Português, eu e os vizinhos (que entretanto se juntaram a mim e à dona Elvira para ouvir os comunicados através do único rádio do prédio, que era o nosso) ouvimos aquele que seria o primeiro comunicado oficial do MFA eram nesse momento 4h26 da manhã. Decidimos então, que os vizinhos mais idosos ficariam por enquanto em casa enquanto eu e os outros dois casais mais novos iríamos até à Rua Augusta, ao café do senhor João tentar saber mais novidades sobre as movimentações das unidades militares lá na zona onde morávamos. Mais e mais civis se juntavam nas ruas, muitos sem ainda perceber o que estava a acontecer e consequentemente com bastante receio de possíveis represálias caso tudo acabasse por dar para o torto.

Após uns momentos de impasse sobre o que haveríamos de fazer e para onde nos havíamos de nos dirigir ouvimos na rádio o quarto comunicado que se dirigia especificamente às forças de segurança e minutos depois o som da liberdade fez se ouvir no rugir dos tanques e jipes da coluna da EPC liderada pelo Cap. Salgueiro Maia, eram 5h50 quando montaram o cerco na Rua do Ouro e ocuparam o Banco de Portugal e a Rádio Marconi, ali mesmo nas nossas barbas a revolução a acontecer! Nós cinco "apanhados"sem querer onde tanto estava prestes a acontecer e foi então que no meio a multidão ouvi a voz do meu Manuel chamar pelo meu nome, "Alice!! Alice meu amor!!" e fiz o impensável, corri na sua direção, saltei para os seus braços e beijei o sem me preocupar se estava no meio da rua, no meio da multidão, se a polícia estaria a ver ou não, a liberdade tinha chegado e começava a ver se nos pormenores, nas pequenas coisas, nas conquistas que iam acontecendo passo a passo, não só ali em Lisboa mas um pouco por todo o país. O meu coração sossegou ao ter o meu Manuel novamente comigo, já tinha pensado em todos os cenários trágicos possíveis para justificar a sua ausência, estava feliz como eu nunca tinha visto, ele era um revolucionário nato, sempre em sarilhos por colar propaganda anti regime nas paredes das ruas e ruelas do centro de Lisboa já tinha levado tantas tareias da PIDE que cheguei mesmo a achar que o tinham apanhado e "calado" de vez, como fizeram com o meu primo Júlio uns meses antes, tinha apenas 20 quando o torturaram e espancaram até à morte. Enquanto contávamos um ao outro o que cada um tinha feito durante aquela madrugada, a passo acelerado, fomos seguindo os tanques e a multidão que iam descendo em direção ao Terreiro do Paço.

"Passei em casa para te ir buscar mas não estavas, fiquei desesperado a pensar que te tinham vindo buscar para te interrogar, mas a dona Elvira apareceu e contou me o que aconteceu, passei no café do senhor João, mas, até ele já tinha fechado a porta e saído à rua, foi então que me lembrei que um dos comunicados pedia ao pessoal médico para se dirigir aos hospitais e vinha avisar a malta que ia lá à tua procura....e foi quando te vi."

- “Com que então um encontro com os teus colegas da tropa... Devias ter me contado, fiquei tão preocupada!"

- "Era perigoso saberes, foi para te proteger, e a dona Elvira só sabia porque tem trabalhado connosco a passar informação, nunca ninguém desconfiou dela, afinal quem é que ia desconfiar de uma velhinha, por isso deixei-a encarregue de te passar a mensagem mas com o mínimo de informação possível, sabia que irias ter a coragem de sair à rua para saberes o que se passava!"

- "Ponderei bastante antes de sair de casa, tive tanto medo, mas a insistência da dona Elvira fez-nos decidir que vínhamos nós cinco mais novos, podia ser perigoso para ela e para os outros vizinhos mais idosos."

- "Sim fizeram bem, nem nós sabíamos ao certo como é que isto ia correr, graças Deus tem corrido tudo conforme o planeado e sem incidentes até agora, pelo menos...espero que continue assim, já chega de sangue derramado por causa deste regime, as coisas tinham de mudar."

- "E com isto tudo já são quase 6h da manhã..."

- "Dá-me a mão, não te quero perder no meio da multidão...Vamos!"

- "Mas vamos onde?"

- "Vamos para ao pé dos rapazes, eles estão à nossa espera, e além disso acredita...vais querer ver as coisas a acontecerem de perto!"


Eram 6h da manhã quando a Escola Prática de Cavalaria entrou no Terreiro do Paço e foi nessa altura que o Capitão Salgueiro Maia informou o Posto de Comando, "Informo que ocupamos Toledo, Bruxelas e Viena.", no mesmo momento caiu me a ficha e os meus olhos encheram se de lágrimas, mas desta vez eram lágrimas de alegria jamais pensei viver o suficiente para conseguir ver aquele momento chegar.

Até à chegada daquela madrugada eu só tinha sobrevivido, mas naquele momento sentia-me mais viva do que nunca! A liberdade acabava de chegar e tinha vindo para ficar. Naquela madrugada a minha vida mudou para sempre. Depois daquela madrugada chegar tudo mudou, o país foi liberto da ditadura, do medo e de todas as formas de censura. Depois daquela madrugada chegar o povo ganhou voz para se poder expressar.

Para mim 25 de Abril de 1974 está marcado como o primeiro dia do resto da minha vida, porque depois daquela madrugada eu deixei de sobreviver e aprendi a viver.

Alice

(Este é um conto ficcional baseado em factos verídicos)